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Dançar: condições para mover

Conversa entre Tanja Baudoin e Sofia Caesar, 2022-2023

 

Para documentação da obra de Sofia, veja:

https://sofiacaesar.net/

https://vimeo.com/353834797 (Workation, 2019)

https://vimeo.com/user6878475 (Superacecidas, 2022)

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Stills de Workation, 2019. Vídeo parte da instalação Workation.

Tanja Baudoin: Eu queria te perguntar sobre um aspecto do seu trabalho que me interessa muito: a questão do movimento. É um aspecto presente naqueles vídeos do Workation que você apresentou na exposição Canseira no Centro Hélio Oiticica no Rio de Janeiro e no museu M KHA em Antuérpia, Bélgica, em 2019, e também nos vídeos mais recentes que envolvem outros performers (Superaquecidas, 2022) e que foram apresentados na Galeria Cavalo (RJ) e no espaço KIOSK em Ghent, Bélgica.

           Me parece que você está fazendo uma pesquisa de movimentos do corpo. Acredito que é uma pesquisa muito profunda, que talvez, à primeira vista, não seja tão óbvio de onde vem, não é tão fácil identificar a sua natureza. Fiquei pensando sobre que tipo de movimento é esse, qual o contexto dessa linguagem do corpo? Por exemplo, nos vídeos curtos que compõem sua instalação Workation (2019), que registram você com um computador na rede ou na praia, você faz um tipo de escorregão, é quase uma queda, mas não é bem isso. É um movimento direcionado, intencional. Parece que você está se entregando profundamente ao movimento, de forma que é raro ver nas obras de arte visuais. Falar que é uma dança ou uma performance não qualificaria. É uma outra coisa, que talvez tem a ver com sua formação: que começou na dança, e depois continuou na arte contemporânea.

         Talvez seja difícil falar sobre isso. Sua obra trata de muitos outros assuntos, como o trabalho, a exaustão, e sobre como essas forças impactam o corpo. Não podemos deixar isso completamente de lado, mas gostaria de ver se conseguimos falar sobre o movimento e o corpo, sem entrar diretamente em uma contextualização sócio-política ou uma interpretação da obra. Eu gostaria de ouvir você falar sobre a relação entre o corpo e o objeto, como, por exemplo, o computador. Qual movimento essa relação pode gerar e qual estado do corpo isso implica.

           Para a gente começar, talvez você possa falar um pouco sobre como você entrou no campo de arte e sobre as práticas que você encontrou na sua formação.

 

Sofia Caesar: Essa é uma pergunta muito interessante, porque ela passa por um lugar que é só do corpo. O que eu quero dizer com só do corpo? Um lugar que não é verbalizável, um lugar que é vivido. O que dá para ser verbalizado são as maneiras de entrar nesse estado do corpo, as imagens, as coisas ao redor. As práticas, os exercícios, as maneiras de se aproximar desses estados corporais difíceis de serem descritos com palavras.

           Meu corpo desde nascença já é condicionado. Sou branca, nascida na Inglaterra e crescida na Glória no Rio de Janeiro, criada por uma família de artistas, professores de arte e agentes culturais diversos. O que eu levo muito para o trabalho passa também por uma formação em dança que teve como base um pensamento somático, ou seja, um pensamento que não tem a ver com a percepção do corpo por um olho externo, visto no palco pela plateia. É o ponto de vista do corpo como ele é experienciado ou visto por dentro do próprio corpo. Essa é a definição da prática somática do Thomas Hanna(1), a quem o termo é geralmente atribuído, mesmo se a história envolve muitas mais pessoas. A escola onde eu estudei, a Escola Angel Vianna(2) na rua Jornalista Orlando Dantas no Rio de Janeiro, tem origens que remontam à década de 60 e 70. Era um lugar de resistência na época da ditadura militar. A escola juntava a Angel Vianna, que era bailarina clássica, com o marido dela já falecido, Klauss Vianna, que trabalhou muito com atores e o teatro, e eles tinham um filho, Rainer Vianna, que também se envolveu. Em 2009, Suzana Saldanha organizou um livro que conta a história e fala sobre o "método Angel Vianna".(3) Angel não gosta da palavra "técnica" e também não gosta da palavra "método", mas foi a palavra meio-de-caminho que ela encontrou para se referenciar a um certo "modus operandi" que usamos para entrar nesses estados corporais.

           Minha formação foi nessa escola, uma escola particular que, naquela época, era quase toda frequentada por pessoas brancas de classe privilegiada. Comecei a dançar dança contemporânea com 17 anos porque eu tinha muitos episódios depressivos onde não conseguia me mover. Eu gostava de música brasileira misturada com punk, grunge, mod, uma mistura que gosto de lembrar como "gótico melado", porque ficavam aqueles punks sentados na orla usando calça comprida preta no alto verão do Rio, todos suados. Eu tinha uma banda e não tinha nenhuma relação com dança a não ser por tocar guitarra e dançar em show de bandinha alternativa. Só que eu estava muito paralisada e melancólica e comecei a ficar com problemas de postura. Uma tia comentou que minha postura estava muito feia, e me falou para fazer uma aula de dança ou algo assim pra ficar menos corcunda. Nesse momento abriu o Centro de Movimento Deborah Colker na Glória.(4) Fui fazer uma aula de dança contemporânea para iniciantes com o Aírton Tenório.(5) E ele foi incrível na minha vida: uma pessoa de dança contemporânea com um método bem estruturado. Hoje eu acho que ele me passou uma técnica similar ao que se referem como a técnica de release, que é sobre soltar seu corpo e usar o peso para gerar uma dinâmica, um movimento. Eu amei a aula e mergulhei naquele. Pela primeira vez na minha vida gostei de mexer meu corpo e sentir meu corpo, de uma outra maneira que não era aquela dor ou paralisia que eu sentia, o peito fechado para dentro, a pedra no estômago. Ou aquela sensação explosiva de tocar guitarra, de gritar no microfone, de perder total controle em êxtase. O professor percebia que eu curtia e falava que eu poderia ser uma dançarina, mas que precisa fazer mais aula, que precisava fazer ballet e correr atrás "do tempo perdido," já que mulheres na dança normalmente começam cedo e eu já havia perdido tempo demais.

 

TB: Ele percebeu um potencial em você… Você entrou na Escola da Angel Vianna logo depois, após terminar o colégio?

 

SC: Primeiro, em 2007, eu fiz a ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial(6), o que me deu uma puta base para a linguagem visual e para realização de projeto. É uma escola incrível, muito técnica: você aprende a soldar, lixar, mexer com fotografia, desenho, metal, madeira, resina, gravura, tipografia, modelagem, móveis... É uma escola de design gráfico e de design de produto, uma formação dupla. Mas, durante a ESDI eu comecei a ter uma depressão muito profunda que me paralisou na cama por dois meses. Eu tive a chance de entrar no Angel, que abriu uma turma à noite. Eu fazia aula de 8 às 17h na ESDI, e de 19h às 23h na Angel. Me formei no Curso Técnico de Bailarino Contemporâneo da Angel Vianna. Aquilo salvou a minha vida.

            Lá eu tive contato com o método da Angel, que basicamente consiste em você desaprender a se mexer. O foco está no que ela chama de “consciência através do movimento”, que é você se mover através da consciência do seu próprio corpo. É sobre dançar. E também é sobre desnaturalizar o movimento do cotidiano. A ideia por trás, pelo que eu entendo, é de desprogramar o corpo, des-disciplinar o corpo; os nossos hábitos, a maneira que você levanta da cadeira… Tem muita gente envolvida na Escola de Angel: tem alguém que faz leitura corporal; uma pessoa que olha para você e vê todas as suas traumas através do seu corpo; tem a Soraya Jorge que trabalha com o Movimento Autêntico, mas que tem uma formação em terapia crânio-sacro e terapias somáticas diversas.(7) Soraya foi minha professora de consciência corporal e ela é muito importante para mim. Outras pessoas que foram particularmente importantes para mim e que ministraram aulas lá foram Maria Alice Poppe(8) e Alexandre Franco.(9)

           O foco do curso técnico não é só desprogramar o seu corpo. A ideia é ir de um corpo organizado, disciplinado, colonizado, para um corpo reinventado, emancipado, o que alguns chamam de "corpo sem órgãos"(10), potencialmente, um corpo que nasce de um processo de desconstrução. Isso gera uma crise em todos os alunos. Mas no último ano, você sai de lá com as suas ferramentas para construir um novo corpo para si. É uma desconfiguração e reconfiguração. E nessa reconfiguração acontece uma invenção. Existe uma utopia de liberdade aí, a possibilidade de fazer uma escolha, de inventar seu corpo, de criar a si mesmo. Todo corpo dança.

            Há muitas pessoas e interesses reunidos lá. Tem uma pegada mais de moderna performance, teatro, tem a pegada de dança contemporânea, e na época tinha um foco grande na “terapia através do movimento”, com pessoas que estão trabalhando com saúde mental, especialmente com a esquizo-análise,(11) tem a Pulsar Cia. de Dança(12) formada por ex-alunos e professores da Angel.

TB: Você dançava com companhias nessa época e também já tinha criado seus trabalhos para palco?

 

SC: Sim, dancei semi-profissionalmente. Dancei com Esther Weitzman(13); Márcio Cunha(14); Maria Alice Poppe; Alexandre Franco… Eu também tive brevemente companhias. Uma ainda adolescete foi uma brincadeira com o Renan Martins.(15) Depois um pouco mais sério com Vandré Vitorino(16), Laura Noronha(17) e Camila Fersi.(18) Meu primeiro solo foi em 2010, no espetáculo de formatura da minha turma no curso técnico, chamado Eu Multidão.

 

TB: Como você começou a trabalhar com vídeo?

 

SC: Eu lembro exatamente quando foi: foi em 2010, quando recebi a proposta da Martha Niklaus(19) para participar em uma exposição que aconteceu dentro de um apartamento vazio. Eu já tinha filmado umas vezes, coisas para depois ver, ensaios, etc., mas nesse trabalho incorporei a câmera na coisa do corpo pela primeira vez. O trabalho era feito para o banheiro. Eu gostava dessa ideia das pessoas que estavam fazendo xixi, olharem e verem um vídeo filmado em cima da mesma privada que utilizavam. Era um vídeo de mim mesma, pulando em cima da privada, em loop. O loop repetia só o momento em que eu estava no ar. Eu virava um tipo de monstro voador, uma borboleta louca, em cima da privada. Esse foi meu primeiro estudo com câmera… e eu curti. Misturou com uma coisa meio punk. E me permitia me sentir mais livre com meu corpo mesmo quando mais deprimido. Mesmo meu primeiro solo de palco foi uma coisa do campo do comportamento meio bizarro, fora da regra, meio animal. No sentido de realmente incorporar um estado físico outro que não é do cotidiano, mas nem tão longe do gesto do que consideramos anormal no dia a dia. Então mais ligado aos gestos do cotidiano, tipo andar, sentar, pular, etc. De uma maneira um pouco desapegada da imagem. Não é sobre uma imagem parada, é um estado físico.

           E com isso, desde 2010, eu fiz muitos trabalhos que envolviam filmar o corpo. Cada vez mais começou a acontecer um certo estado de encantamento entre o corpo e a câmera. Assim que a câmera se mexia, se aproximava, ou era ligada, tinha algo no corpo que era acionado. Uma espécie de transe, ou uma espécie de estado de presença. Este estado de presença eu associo muito à prática de Movimento Autêntico que eu comecei lá na Angel com Soraya Jorge. Essa prática envolve a relação entre uma pessoa que é a testemunha e outra pessoa que é movedora. Para mim a câmera já serviu de testemunha em alguns momentos solitários e paralisados na minha vida. A câmera era testemunha de angústia, de aflições desse corpo “outro”, de outros estados, e hoje sei que na psiquiatria se enquadram como psicoses. Eu sempre tive vontade de ir além da limitação do meu corpo estruturado. Talvez porque às vezes, na minha angústia, meu corpo se desestruturava e eu sentia necessidade de mover isso.

           Além do mais, chega uma hora que, se você se encontra presa numa linguagem que te prende, como para mim era a dança no palco, ou a dança clássica, ou a dança moderna, tem uma hora que pode ter uma sensação de limitação, de sufoco. A mim, as coreografias muito duras de palco italiano davam a sensação de estar presa no limite da minha pele, nos meus padrões de comportamento. Até como espectadora, presa na sala sem poder sair. Nessa hora meu corpo quer ir para outro lugar, se libertar e se esparramar por aí.

 

TB: Você disse que quando a câmera está ligada você entra num outro estado de presença, quase de transe. Ao mesmo tempo, se a câmera tem o papel da testemunha, existe a possibilidade de criar distância. Assistir as coisas que foram gravadas talvez seja uma forma de se tirar do corpo.

 

SC: Sim, e se distanciar do corpo é diferente de transcendê-lo, da sensação de ir para além dos limites do corpo, de se perder, uma sensação que dançar nos dá. A câmera talvez tenha tido, durante esse período, a função de testemunha como no Movimento Autêntico.(20) De me ajudar a entender essa disfuncionalidade do meu corpo, que às vezes se paralisa ou se acelera demais.

            Naquela época, eu entendia que dançar com a câmera era quase como inventar um corpo novo, um corpo que existe atravessado pela imagem que a câmera faz. Dançar com um corpo que só se corporifica daquela maneira, na imagem, porque a câmera está ali filmando o tempo todo, temos a câmera como extensão de nossos corpos. É pensar um corpo mais virtual, um pouco mais híbrido. Um corpo no qual a câmera é um órgão, ela é parte daquele corpo. Eu só experiencio a vida do jeito que experiencio por causa do meu corpo. E a câmera hoje faz parte desse corpo, ela perpassa minha experiência do mundo. Mesmo se ela estiver desligada, ela já faz parte do meu modo de estar no mundo.

              Mas este não é o corpo da modelo, em pausa para a fotografia, não é um corpo “em pose.” É o corpo que se testemunha ao se mover com a câmera dentro dele. Que se move atravessando um estado alterado de consciência corporal – que inclui o novo órgão-câmera.

           As duas últimas séries de vídeos (Workation, 2019; e Superaquecidas, 2022) foram uma continuação de pensar esses movimentos corporais, existindo alí junto com a câmera que testemunha, mas em colaboração com outros corpos que não o meu ou o "corpo da câmera" (se consideramos a câmera um corpo que move). Na obra Workation, a câmera se aproxima ou se afasta: são quatro vídeos, em dois ela se aproxima, nos outros dois ela se afasta. É um zoom de grande alcance, que vai de um grande ângulo até bem perto. Quando o movimento de zoom da lente se iniciava, começava o que a gente, eu e Andrea Capella(21) – que atuou como diretora de fotografia em ambas obras –, chamávamos de “encantamento”, ou feitiço. Enquanto a lente da câmera ia se aproximando, a minha cabeça ia caindo. As duas coisas aconteciam simultaneamente.

              Nessa movimentação corporal que eu tenho pesquisado, desde o início, eu tinha um interesse muito grande por “pausa”. Por parar, estar parada, o que isso englobava. Eu sempre fui interessada na relação da pausa como algo inerte, como algo improdutivo e o movimento como algo produtivo… por assim me sentia quando inerte: improdutiva, parada, nula. O André Lepecki(22) fala muito sobre o projeto da modernidade como sendo o projeto do movimento, um movimento-flecha que vai e corta… Tem um texto dele que fala sobre a pausa como forma de protesto, de oposição, resistência.(23) Mas acho que minha pegada nem é tanto por aí, eu acho que eu ainda estou inventando um outro corpo, um corpo que não é produtivo, nem improdutivo, sabe? É um outro estado que fica tensionado entre os dois.

           Isso me interesse, a pausa como um estado. Muito por questões pessoais minhas, porque nas minhas crises de depressão eu tinha crises de angústia, momentos de paralisia, de não conseguir me mexer. Com essa pesquisa comecei a tentar abrir isso um pouco.

(1) Thomas Hanna, "What is Somatics?". In: Bone, Breath and Gesture: Practices of Embodiment, ed. Don Henlon Johnson (Berkeley: North Atlantic Books, 1995), 341 - 352.

 

(2) A Angel Vianna Escola e Faculdade de Dança.

(3) Suzana Saldanha (org.), Angel Vianna: Sistema, Método, ou Técnica? (Rio de Janeiro: Funarte, 2009).

(4) Centro de Movimento Deborah Colker.

(5) Aírton Tenório é bailarino, coreógrafo e professor de dança.

(6) Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

(7) Soraya Jorge é especialista em movimento, dançarina contemporânea e professora de Consciência do Movimento. Soraya é co-fundadora, com Guto Macedo, do Centro Internacional do Movimento Somático.

(8) Maria Alice Poppe é bailarina, pesquisadora e colaboradora em processos de criação de dança contemporânea.

(9) Alexandre Franco é bailarino e Professor de Dança na Sarah Rio de Janeiro - Centro Internacional de Neurorreabilitação e Neurociências.

(10) O conceito do "corpo sem órgãos" foi desenvolvido pelo Gilles Deleuze e Félix Guattari para falar sobre o potencial desregulado de um corpo sem estruturas organizacionais impostas - Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. 2. ed. trad. Luiz B. L. Orlandi (São Paulo: Editora 34, 2011).

 

(11) "Esquizo-análise" é outro termo do Gilles Deleuze e Félix Guattari, que descreve um tipo de análise social a partir dos investimos libidinais - Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. 2. ed. trad. Luiz B. L. Orlandi (São Paulo: Editora 34, 2011). No Brasil, esquizo-análise se tornou uma prática clínica.

 

(12) A Pulsar Companhia de Dança, formada por bailarinos portadores e não portadores de deficiência, tem como objetivo causar no espectador um olhar diferenciado em relação à multiplicidade dos indivíduos a partir da estética da dança. 

(13) Esther Weitzman é diretora da Companhia Esther Weitzman, coreógrafa, professora, bailarina, preparadora corporal, e Especialista em Filosofia da Arte, PUC/RJ.

(14) Marcio Cunha é coreógrafo, performer e artista plástico.

(15)  Renan Martins de Oliveira é coreógrafo e performer radicado entre Porto (Portugal) e Heidelberg (Alemanhã).

(16) Vandré Vitorino é bailarino contemporâneo, pesquisador de contato improvisação, instrutor de Pilates e profissional em fasciaterapia.

(17) Laura Noronha é fisioterapeuta, com especialização em saúde pélvica funcional. Formação técnica em dança e certificação em Pilates.

(18) Camila Fersi é artista da cena, pesquisadora das dramaturgias contemporâneas, professora de dança, e artista no Coletivo Instantânio.

(19) Martha Niklaus é artista visual. Criou e dirigiu, durante 10 anos (2003-2013), a Galeria do Lago - arte contemporânea, no Museu da República (RJ).

(20) No Movimento Autêntico, "a pessoa que move (Movedor) fecha os olhos para fazer um mapeamento de seus próprios impulsos e decidir se quer externalizá-los ou não. E a Testemunha, de olhos abertos, observa o Movedor e o que acontece consigo próprio na presença desse outro."

(21)  A artista Andrea Capella estreou na direção com o curta-metragem Desassossego (Filme das Maravilhas) em 2010. Antes disso, foi diretora de fotografia de alguns curtas-metragens e do filme "A fuga, a raiva, a dança, a bunda, a boca, a calma, a vida da mulher gorila" (2009) de Felipe Bragança e Marina Meliande. 

(22) André Lepecki é Professor Titular da New York University, onde coordena o Departamento de Estudos da Performance.

(23) André Lepecki, “Movimento na pausa”. In: ConTactos, ed. Diana Taylor e Marcial Godoy-Anativia, HemiPress, 2020.

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Vista da exposição Canseira, Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, (2019). Foto: Pat Kilgore.

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Mobiles Cansados, 2019. Letras, fio de costura, barrinhas de metal, 120 x 120 x 60 cm. Foto: Pat Kilgore.

TB: Nos últimos anos, você fez vários móbiles, que as vezes consistem em palavras desconstruídas em letras, ou objetos como celulares, desconstruídos em várias partes (Mobiles Cansados, 2019). Assim os objetos ou palavras perdem a função original, mas fazem parte de uma estrutura nova que também envolve movimento. Porque são móbiles, eles são movidos pelo ar. São constelações em movimento, nunca fixo. É uma investigação do movimento, mas com objetos como os protagonistas principais, e com um tipo de movimento que não é mecânica, mas vem do ambiente. Poderia falar sobre esse tipo de movimento do objeto?

 

SC: Agora eu lembrei de uma coisa da primeira pergunta, que talvez seja uma resposta mais específica sobre essa questão do movimento na minha prática. Todos os gestos e movimentos que eu venho explorando em vários trabalhos desde Workation tem a ver com usar o peso do dispositivo técnico. O objeto, como por exemplo o celular, é pesado no sentido que é exaustivo, mas também é pesado porque ele é um material, e matéria tem peso. A questão é como usar isso para ir para o chão, como entregar o peso para o chão. Muitos dos gestos nesses trabalhos vieram dessa ideia de incorporar o peso. Como o celular não é muito pesado, essa queda não é veloz. Então, é sobre sentir o peso… ir sentindo… levando… até o chão. Depois do vídeo do Workation eu fiz um performance chamado Unrest (inquieta, 2019), com celulares e computadores. O celular começou aparecer não como câmera, mas como objeto físico.

             Sobre os móbiles: eu estava muito cansada, exausta, e eu encontrei umas letrinhas de plástico. Escrevi a palavra “exausta” e comecei pensar sobre o peso dessas palavras, que significam tanto, e se eu pudesse re-escrever, re-figurar… Os primeiros móbiles que eu fiz foram de palavras sempre associadas a cansaço, como “canseira”, “exaustão”, e sinônimos dessas palavras em outras línguas, “exhausted”, “crevée”, “uitgeput”... É isso, pelo movimento da estrutura dar uma nova estrutura, um novo corpo. Sempre fico pensando nisso: dar um novo corpo, mobilizar, desorganizar e reorganizar o corpo pelo movimento.

             Os móbiles com os elementos do celular surgiram de um momento de crise. O celular é um objeto que me oprime. Quando entro em depressão, eu não consigo responder mensagem, eu fico totalmente paralisada em relação a movimento constante da comunicação. Eu não estava conseguindo me mexer, mas um dia levantei da cama e comecei a dar um outro corpo para celular. O celular é um "telemóvel”, um móbile, mas ele é muito “fixo” no sentido que ele é compacto, duro, e impenetrável corporalmente. Ele é transparente no sentido de comunicação: eu consigo acessar as pessoas imediatamente, ou ver o que eles estão fazendo no Instagram, mas fisicamente, o corpo do celular eu não conheço.

             A gente fica encantado, em transe, absorvido por celular. Ele tem câmera também, que é uma forma de captura que é violenta, que apropria, usa, instrumentaliza. Eu sempre tive muita paranóia em relação a câmera, por isso demorei para filmar outras pessoas. Sempre senti que a câmera é um monstro, ele captura e fixa um corpo que tem um mínimo de liberdade que possa vir a ter, que nem sei se tem. E a câmera faz produtivo um corpo que não era produtivo. É uma visão um pouco paranoica da tecnologia, mas isso também já faz parte do início da história de fotografia e filme. Penso na reprodutibilidade do corpo, nas fotos do Muybridge(24), ou nos primeiros filmes da dançarina Loie Fuller(25): é uma coisa espectral. A palavra “coreografia” vem de um vontade parecida, de capturar e reproduzir o movimento. Historicizar o movimento.

 

TB: Quando você trabalha com outras pessoas, como você lida com essas tensões que a câmera carrega? Qual é seu modo de trabalhar com os movimentos dos outros em relação à câmera, tendo em vista também que uma câmera ligada pode provocar outros comportamentos?

 

SC: Pois é. Não dá trabalhar comigo mesmo o tempo todo, porque o trabalho não é sobre a minha pessoa, nunca foi. Em algum momento eu saquei que, se eu usar esses métodos que eu usava comigo mesmo com outras pessoas, a gente chegava juntos num estado diferente. Cada corpo é diferente, mas através de uma metodologia, uma maneira de trabalhar o corpo, chegamos ao movimento. No caso do trabalho recente de Superaquecidas eu dava um “ignição”, um gatilho de início de improvisação, que era a mesma pergunta para todo mundo: o que você pode fazer com seu corpo quando seu computador superaquecer? Que outro corpo pode existir nesse momento, nesse estado de calor, de impossibilidade de trabalhar porque a máquina está exausta? Isso gerou conversas, propostas, contra-propostas, entre nós todas – as três performers e a Andrea Capella, que também estava envolvida, porque ela também dança, ela dança com a câmera.

(24) Eadweard Muybridge (1830-1904) foi um fotógrafo conhecido por seu trabalho pioneiro em estudos fotográficos de movimento.

 

(25) Loie Fuller (1862-1928) foi uma dançarina e atriz, pioneira das técnicas de dança moderna. Sua coreografia Serpentine Dance apareceu nos primeiros filmes da Edison Company (1894) e dos cineastas Auguste e Louis Lumière (1896). 

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Still de Superaquecidas, 2022. Vídeo parte da instalação Superaquecidas, com quatro telas, ventiladores, cabos e banquinhos tortos. Dimensões variáveis. Feito em colaboração com Andrea Capella, Varinia Canto Vila, Laura Samy, Lara Negalara, Nyandra Fernandes, Michelle Chevrand. 

@Galeria Cavalo, Rio de Janeiro.

TB: Pode contar mais sobre esse processo, sobre esses gatilhos você usa para as outras pessoas?

 

SC: Para meu doutorado estou criando uma espécie de um livro, um caderno de trabalho, de exercícios que eu fui aprendendo ao longo do tempo, que eu fui usando para fazer meus vídeos e meus trabalhos de performance. Muitas vezes são exercícios para serem feitos com dispositivos, câmeras… estando ligado ou não.

 

TB: Como funciona isso, quando não estão ligados? Vira um objeto morto?

 

SC: Vira um objeto relacional! Vira uma extensão do corpo.

           Quando eu trabalho com outras pessoas eu normalmente trabalho de uma maneira pedagógica, no sentido que eu não dirige a pessoa, mas eu passo os exercícios. São scores – partituras coreográficas sempre muito simples. Com isso a gente vai experimentando e improvisando. São essas estratégicas que eu estou tentando traçar historicamente na minha pesquisa de doutorado. Tem materiais que vem do Augusto Boal, do Teatro do Oprimido(26), e muito que eu fui usando ao longo do tempo vem da Angel Vianna. Tem coisas de uma peça do grupo Ueinzz que eu vi em São Paulo em 2014, que mudou minha vida!(27) Estou tentando re-traçar esses caminhos metodológicos. Como lidar com o corpo? E com os objetos disciplinadores do corpo, como o celular, o computador? Como inventar um outro corpo, como desconstruir, re-aprender, re-fazer, re-ligar, re-parar?

          Mas tudo isso é tão difícil de falar! Vem da experiência mesmo. Quando eu falo “vou construir um novo corpo”, as pessoas acham meio absurdo, acham meio que desconfiada. É um processo subjetivo mesmo, um processo interno, que passa pelas sensações, pela percepção, pela experiência, pela memória daquele corpo que está trabalhando ali, daquela cena.

 

TB: Quando você fala sobre inventar um novo corpo, sobre desaprender, todas essas coisas que vem da metodologia da Angel Vianna, da tentativa de se liberar das estruturas e hábitos… Você acha que é realmente possível? Eu acho que é, mas ao final, as opções que temos nós sempre levam para uma outra estrutura, um outro método, outras formas de captura.

 

SC: Esse é o negócio, né? Angel faz parte de uma geração de muitas pessoas com trabalho corporal, fizeram parte de um percurso que luta contra uma dança que universaliza o corpo. A dança "universalizante" é uma dança que se caracteriza como uma resposta à dança clássica – são diversas técnicas que vão contra o ballet eurocêntrico, contra a verticalidade, a ideia da iluminação, da cabeça do homem branco sendo superior a corpos outros. São técnicas distintas, cada uma com seu foco – tem muito “centro”, tem release, tem a técnica da Martha Graham...(28) Tem a técnica do Rudolf von Laban(29) e o sistema da notação que ele criou para tentar dissociar o movimento da representação da dança clássica onde todos os gestos tinham significados narrativos. O Laban estava interessado no movimento pelo movimento. Todas essas técnicas modernas têm a ver com organização, com construção. Elas desenvolvem cada uma delas uma técnica que pode ser aplicada à um grupo de corpos. E a dança contemporânea, como eu aprendi na Angel, apesar de todas as críticas possíveis de serem feitas, na prática é um tentativa de se desfazer da noção de técnica universalizante. Por isso Angel Vianna não fala “técnica”, por isso ela fala “método”.

        Enfim, eu adoro falar sobre a história da dança, porque eu sou interessada mesmo, eu gosto! Comecei a dar aula disso com uns 19 anos. Acho que não falamos suficientemente da história da dança. Todo mundo na arte contemporânea conhece o Bruce Nauman(30), mas não sabe dessa coisa foda que está sendo feita na dança: a descolonização dos movimentos do corpo domesticado pelas sociedades ocidentais do norte. Esse tipo de trabalho corporal eu admiro e sinto muito bem desenvolvidos nas obras da artista Nyandra Fernandes(31), por exemplo, ou Davi Pontes(32).

 

TB: Toda essa história, as referências, as pessoas, as técnicas, que você mencionou na nossa conversa, quando você entra em contato com eles, ficam carregados no seu corpo, né? O que também é lindo. Pode tentar se libertar, mas tem coisas que ficam…

 

SC: Ficam. Então, eu comecei a falar sobre a história da dança para falar que quando eu comecei a aprender a técnica do Laban, por exemplo, eu fiquei viciada naquilo. E quando uma bailarina clássica entrava na Escola Angel Vianna na minha época, ou outras pessoas com uma formação técnica forte, como as pessoas que trabalhavam no Cirque du Soleil, às vezes era mais difícil para eles passar pelos dois anos de método da Angel do que para alguém que nunca fez dança na vida. É um ponto importante para Angel, que qualquer pessoa possa dançar. É outra coisa que não é o “capacitismo” da técnica universalizante que falamos antes. Eu tinha uma colega que era incrível: a maravilhosa Moira Braga.(33) Ela é uma mulher cega que vem construindo uma carreira nas artes da cena e, atualmente, é professora da Escola e Faculdade Angel Vianna. Dancei com ela em um espetáculo.

           Essa metodologia, que parte de lugares como Angel Vianna é muito relevante para meu trabalho. Um método que mistura muitas coisas, do Augusto Boal, Klaus Vianna, Paulo Freire(34), danças populares, o movimento antipsiquiatria brasileiro, a liberação do corpo no período da ditadura militar... Hoje começa a dar ferramentas aos corpos e mentes de pessoas plurais que têm uma visão, que se movem totalmente contra a noção que volta de ditadura, pensando um corpo outro.

          Mas é isso, dança contemporânea hoje mistura muito com ritual, tradições Afro-Brasileiras, performance, com teatro contemporâneo, artes visuais, outras coisas… É isso que você falou: toda vez que tem uma espécie de trabalho corporal, tem um lado que condiciona. E recondiciona. Aí, a partir do momento que o corpo foi recondicionado, existe sempre a pulga atrás da minha orelha: ele está de novo disciplinado?

 

TB: Tem que ficar dançando, né?!

 

SC: Tem que se estar dançando o tempo todo! Para mim, dançar significa justamente isso: mover aquilo que nos condiciona a nos mover da maneira que inconscientemente nos movemos.

(26) Augusto Boal (1931-2009) foi o fundador do Teatro de Oprimido, método teatral que envolve o público de forma ativa na construção das peças. Ele desenvolveu seu método baseado na pedagogia de Paulo Freire, nos anos 70, durante seu exílio político. 

(27) Ueinzz é território cênico para quem sente vacilar o mundo. A companhia é composta por pacientes e usuários de serviços de saúde mental, terapeutas, atores profissionais, estagiários de teatro ou performance, compositores e filósofos, diretores de teatro consagrados e vidas por um triz.

(28) Martha Graham (1894-1991), dançarina e coreógrafa estadunidense, foi uma das principais proponentes da dança moderna do século 20.

(29) Rudolf von Laban (1879-1958) foi um dançarino, coreógrafo e teórico da dança, pioneiro da dança moderna com um enfoque expressionista e teatral. 

(30) Bruce Nauman é artista estadunidense que é muito reconhecido por sua prática de performance e videoarte que começou a desenvolver no final dos anos 60.

(31) Nyandra Fernandes é dançarina e diretora da peça “Elegbará”.

(32) Davi Pontes é artista, coreógrafo e pesquisador.

(33) Moira Braga é atriz, bailarina, jornalista, pesquisadora e consultora em acessibilidade comunicacional e artística.

(34) Paulo Freire (1921-1997) foi um educador e filósofo e autor do Pedagogia do Oprimido (1968).

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